
O ritmo acelera e o garoto - Kinzang Norbu, de 7 anos - lança-se ao chão e gira de costas, tão rápido que se dissolve numa enevoada cor de açafrão. Talvez essa gente, imersa no imemorial misticismo do Butão, a terra da tigresa voadora e do divino louco, imagine que Norbu possa ser a reencarnação rodopiante de algum santo budista. Só que o garoto está canalizando outro mundo, mais mistificante. Dos alto-falantes, vindo de um reluzente laptop Macintosh branco, estrondeia não um cântico budista, mas o refrão que abre o apimentado hino pop de Shakira, Hips Don't Lie ("Os quadris não mentem"). E quando Norbu faz uma parada de cabeça, sem as mãos, a camisa cai e revela sua homenagem à cultura jovem global: tênis Nike vermelho de cano longo, calça larga de agasalho Adidas e uma tatuagem temporária que anuncia, em letras inglesas denteadas, o nome que ele e sua turma adotaram, B-Boyz.

Quando a música termina, Norbu deixa a cena cheio de pose e, com um sorriso travesso, faz a saudação da gangue arqueando um dedo. Seus colegas B-Boyz assobiam e aplaudem. Os aturdidos monges riem, mostrando a dentadura rubra. Os camponeses, pasmos, apenas fitam o garoto. Se ele fosse um dançarino mascarado em um festival, girando para a iluminação, talvez entendessem. Mas, apesar de toda a incompreensão mútua, esse momento os une. Pois, com sua apresentação mirabolante, Norbu captou a essência de um país que está tentando o impossível: pular da Idade Média para o século 21 sem perder o equilíbrio.
Por mais de mil anos, esse minúsculo reino, conhecido pelos habitantes como Druk Yul, "terra do dragão trovejante", sobreviveu em esplêndido isolamento: um lugar do tamanho da Suíça engastado nas pregas das montanhas entre dois gigantes, Índia e China. Apartado do resto do mundo pela geografia e por uma política deliberada, até os anos 1960 o país não teve estrada, eletricidade, veículo motorizado, telefone ou serviço postal. Mesmo hoje, sua hipnótica paisagem faz pensar em um lugar esquecido pelo tempo: templos antigos encarapitados em penhascos brumosos, picos sagrados erguendo-se sobre rios e florestas intactos, um chalé de madeira habitado por um monarca benevolente com uma de suas quatro esposas, todas irmãs. Os visitantes, é claro, não resistem a chamar o Butão de a última Shangri-lá._

Mas até Shangri-lá tem de mudar. Quando o rei Jigme Singye Wangchuck ascendeu ao trono, em 1972, o Butão estava entre os países com os mais altos índices de pobreza, analfabetismo e mortalidade infantil - um legado da política de isolamento. "Pagamos um preço alto", diria mais tarde o rei. Seu pai, o terceiro rei do Butão, começara a abrir o país na década de 60, construindo estradas, escolas e clínicas, empenhando-se na admissão do Butão nas Nações Unidas. O rei Wangchuck iria muito além. Com a autoconfiança de um governante cujo país nunca fora conquistado, ele tentou ditar as condições para a abertura do Butão e, no processo, redefinir o próprio significado de desenvolvimento.

E cunhou uma expressão bacana para descrever seu objetivo: Felicidade Nacional Bruta.
Para muitos butaneses, essa idéia não é mera ferramenta de marketing ou utopia filosófica.
É diretriz de sobrevivência. Guiado pelos "quatro pilares da Felicidade Nacional Bruta" - desenvolvimento sustentável, proteção do meio ambiente, preservação da cultura e bom governo -, o Butão arrancou-se da pobreza esmagadora sem explorar seus recursos naturais (com exceção da energia hidrelétrica, vendida à Índia como principal fonte de receitas externas). Quase três quartos do país ainda são cobertos por florestas, com mais de 25% delas - uma das mais altas porcentagens do mundo - demarcadas como parques nacionais e outras áreas protegidas. Os índices de analfabetismo e mortalidade infantil despencaram, e a economia vai de vento em popa. Também o turismo está crescendo, embora rigorosos limites à construção e uma taxa diária de até 240 dólares cobrada de cada visitante afugentem a horda de mochileiros que invadiu o Nepal.


E, então, chegou a hora do ousado ponto alto do experimento modernizante do Butão: mudar para a democracia. Nunca na história, dizem as autoridades butanesas, nenhum monarca benquisto abdicara do trono para entregar o poder ao povo. Mas, em 2006, foi o que fez o rei Jigme Singye Wangchuck, gerando singular convergência de eventos para 2008: uma coroação (o quarto rei entrega a coroa do corvo a seu filho, Jigme Khesar Namgyel Wangchuck, de 28 anos, que será um monarca constitucional), a celebração de um centenário (o 100o aniversário do monarca foi em 2007, mas um astrólogo real declarou o ano seguinte mais auspicioso) e, o mais importante, a formação, em meados do ano, do primeiro governo democrático do país.
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